Monday, August 14, 2006

No dia em que partimos

"Todos acabaríamos por morrer e, quando os nossos corpos fossem levados e enterrados no cemitério, só os nossos amigos e familiares saberiam que nós tínhamos partido. As nossas mortes não seriam anunciadas na rádio, nem na televisão (...). Ninguém escreveria livro nenhum sobre nós. Essa é uma honra reservada aos poderosos, às celebridades, àqueles que possuem talentos excepcionais (...)."*

Entre nós ficou muito mais do que alguma vez poderá ser escrito. Aquilo que nunca soubemos verbalizar, que nunca quisemos passar para palavras, por ser impossível descrevê-lo.

Faz hoje 1 ano que te vi vivo pela última vez, que te senti respirar, que te abracei e senti o calor do teu corpo, que pousei a minha mão sobre o teu coração, ainda a bater. Despediste-te de mim. Despedi-me de ti, dizendo que te amo. Amanhã partirás para sempre e eu parto contigo. Para sempre.

*Paul Auster, "As Loucuras de Brooklin"

Tuesday, August 08, 2006

Quando não sabemos o que queremos

Já alguma vez sentiram que estão com a pessoa errada no lugar certo? Ou aquela vontade de estar com ela, sem saberem muito bem porquê, mesmo conscientes de que aquela não é «a pessoa» que querem ter ao vosso lado?
Provavelmente este é dos sentimentos mais triviais, nada difíceis de encontrar no dia-a-dia de qualquer um mas, não sei porquê, sinto-me tremendamente estúpida quando estas coisas me acontecem.
É certo que ultimamente tenho sabido muito pouco sobre aquilo que quero e talvez por isso me vá deixando levar, para ver no que vai dar. Isso não é tanto o que me preocupa mas antes o facto de, mesmo certa de que aquela relação tem os dias contados, colocar-me sistematicamente em situações de teste e de comparação. Fico insegura, acho-me aquém do que gostaria de ser, tendo a comparar-me com outras mulheres, como se eu realmente necessitasse disso para gostar de mim. Às vezes pareço querer auto-flagelar e atiro-me para a arena na ânsia de me superar a mim mesma. Mas porquê? E a quem tenho eu de provar isso, se nem sequer gosto assim tanto dele?
Se há dias em que me sinto estúpida, este é um deles.

Thursday, June 08, 2006

Carta extraviada

Pediste-me que te escrevesse, que te dissesse alguma coisa esta semana. Quando fechei a porta de casa e dissémos adeus, ambos sabíamos que isso não iria acontecer e que tão cedo não nos voltariamos a ver. Fomos sempre assim e quanto a isso nada sabemos fazer. Nunca fomos um do outro, ainda que não consigamos ignorar o desejo que compele os nossos corpos. Ambos sabemos que acabamos por nos cruzar algures e por isso deixamos que o tempo se encarregue de marcar o nosso próximo encontro.

Depois de teres saído, voltei para a cama e deitei-me no espaço que deixaras vago. Não consegui dormir com o teu cheiro. Passei o resto da noite assolada por pensamentos que me transportavam para a roupa espalhada no chão. Sonhei com os nossos corpos colados e desejei que ainda ali estivesses. Lutei toda a noite para que me esquecesse dela e acabei por adormecer.

Acordei de manhã com uma sensação estranha e auto-programei-me para cuidar de mim. Quando me dirigi ao roupeiro para tirar uma toalha, encontrei as minhas mãos marcadas no espelho. Vi o teu reflexo e por isso apressei-me a limpar as marcas.

Passei a tarde estendida ao sol, a olhar para a neblina que se formara. Entreguei o meu corpo à vaga de ar quente que me engolia e deixei-a acariciar-me a pele, como se de um antídoto se tratasse. Ao longo de horas perguntei-me «que queria eu da vida?» e «para onde me estava a levar?». Mesmo perdida nas minhas respostas, senti-me tranquila e confiante. Conheço-me bem e sei que não somo as pessoas por quem nos iremos apaixonar.

Regressei a casa pensativa e enfiei-me debaixo de um duche frio. Enquanto enxugava o cabelo ao espelho, lembrei-me de uma frase que lera num livro, que dizia que o nosso rosto nunca mente por ser o único mapa que regista todos os territórios que habitámos. Compreendi que nada mudara e que estava de volta ao meu território.

Um dia destes cruzamo-nos.

Thursday, May 25, 2006

Diário de um «Dealer» Sentimental














As relações não passam de transacções entre as pessoas que, na maior parte das vezes, se revelam excelentes negociantes, pois na verdade disputam um negócio com ares de quem domina o assunto, nunca dando a entender desconhecerem-no por completo. Tudo parte da intuição, da imagem que criamos em torno daquilo que julgamos estar a ser alvo de negociação, mas no fundo não fazemos mais que utilizar estratégias, jogar com o mistério e criar expectativas no potencial comprador. É quase como se estivessemos perante a velha banha da cobra e, nos tempos que correm, até podiamos converter este jogo para o formato de televenda, onde o sonho se vende com pouco argumento e conteúdo, bastando para tal conseguirmos convencer o outro de que estamos perante a fórmula mágica.
Seja por defesa nossa ou por falta de capacidade para colocarmos as cartas em cima da mesa, deixamo-nos enredar na lábia do vendedor, construindo imagens que nos fazem acreditar estarmos perante aquilo que mais desejamos ter. O problema é quando a astúcia do «dealer» se vai esgotando, o negócio se vai complicando e tarda em concretizar-se. Começamos a questionar a nossa capacidade de persuasão e a pensar que mais nos faltará para sermos os fiéis proprietários do bem que cobiçamos. Suspeitamos da qualidade do produto, das reais intenções do vendedor e vamos esmorecendo o nosso entusiasmo pelo negócio. Há alturas em que nos esquecemos daquela «fantástica» oportunidade, mas há outros em que nos detemos curiosos por descobrir se não se trataria de uma falsificação e não descansamos enquanto não desvendamos esse mistério.
Há algum tempo que desconfio de um vendedor que tão depressa me prende a atenção como me fecha a porta da loja na cara.
De tanto olhar para a montra das oportunidades, hoje finalmente percebi o motivo pelo qual nunca passámos do marketing pessoal. Mas o que mais me chateia não é ter perdido o negócio, mas antes não entender por que raio insiste ele em negociar comigo sabendo que a sua transacção se rege pela claúsula que refere *para consumo exclusivo dos homens!

Tuesday, May 09, 2006

Como Ícaro



Sempre que falo contigo ganho coragem para me abeirar do precipício, abrir as asas e dar o salto sobre o mar.
Sei que o meu problema é olhar demasiado para baixo e desviar a atenção do horizonte, em vez de me concentrar na rota a seguir.
Nunca fui boa tripulante dos meus voos e tal como Ícaro, perco-me à procura do calor do Sol, mesmo sabendo que vou derreter o coração.
De tanta queda que dei, agora só me consigo focar na altura que me separa do chão e peco por não me deixar elevar demasiado.
Gostava de ser um planador para não me preocupar com as correntes de ar quente que me fazem oscilar quando pairo, mas falta-me a confiança nas asas e acabo por desistir da viagem.
Como uma ave migratória, tendo a voar para Sul sempre que sigo o meu instinto. Transporto-me para um passado de memórias e sensações quentes, para um refúgio a Sul que já não existe.
Baixo as asas e hiberno, esperando que o Verão acabe por voltar. Invisto todas as minhas energias a preparar-me para a estação que aí vem, mas quando chegam as primeras brisas de ar quente questiono-me quanto à minha habilidade para voar.
Na verdade, falta-me uma rampa de lançamento, um impulso que me projecte para o grande salto que tenho de dar.
Apercebo-me disso sempre que falo contigo.

Monday, March 13, 2006

(Ar)Rendo-Me



Estávamos no restaurante. A noite já ia longa e bebida.
Falávamos da vida, conspirávamos sobre homens e mulheres, intuíamos sobre o que contava a nossa morfologia acerca de nós mesmos. Dizia ele que a simples fisionomia, o cabelo, o olhar, diziam tudo sobre uma pessoa. Os meus caracóis revelavam-lhe em mim uma mulher romântica e apaixonada, que não sabia amar a meio-termo, ou em part-time. Atirava ao ar aquilo que lhe vinha a cabeça e lançava-me descrições de mim mesma. Que era aventureira. Que tinha um ar coquete e atrevido, não escondendo um lado muito sensual. Disse-me, mal me conhecendo, que eu precisava de alguém ao meu lado, que me protegesse. Não sei se gostei da sensação de ser despida com um olhar e sobretudo que me ensinassem a pensar na fragilidade que tento a todo o custo esconder. Mas muita coisa certa se disse àquela mesa.
A conversa transbordou para a vida dele e para o vazio que quer prencher. Apontando para o coração disse:
- Estou à procura de inquilino para me habitar.
- Para trespasse? - pergunto-lhe.
- Não, para arrendamento. O meu coração foi totalmente remodelado e está pronto para ser ocupado.
- Qual é a sua área útil?
Hesita.
- É interminável. Não tenho como medir.
- Deves estar a pedir um valor altíssimo por ele!
- Não. Não peço nada. Dou-o.

Percebo, então, que também o meu coração procura um inquilino mas que tardo em tornar o anúncio público. Sei que não será fácil arrendá-lo. Talvez porque a minha porta só se abre para os inquilinos que procuram outras assoalhadas, ou então porque me recuso a abri-la a quem sei que quer entrar. Será porque a remodelação do espaço ainda se encontra em curso, ou porque receio que um estranho me invada?

Desconfio, porém, que «casa nova» possa ser sinónimo de «vida nova» e perante isso, anuncio publicamente que me (ar)rendo.

Sunday, February 12, 2006

Amo-te dez mil anos


Há quem goste de sublinhar os livros, sempre que se depara com algo de muito belo. Eu gosto de sublinhar os filmes.

"- Tem recados para AC/368?
- Senha, por favor.
- «Amo-te dez mil anos.»

Todos temos os nossos desgostos. Sempre que deixava de gostar de alguém, ia correr. Correr ajuda a eliminar água do corpo, para que não reste nenhuma para lágrimas. Como posso eu verter lágrimas?

Achei-lhe graça quando disse que acabaríamos no Dia das Mentiras. E resolvi deixar a graça durar um mês. A partir daí, comecei a comprar todos os dias latas de ananás com validade até 1 de Maio. Isso por a May adorar ananás. Faço também anos dia 1 de Maio.

Juro a mim próprio que ou a May muda de ideias até eu ter comprado trinta latas, ou acaba-se também a validade do nosso amor!

De certa maneira, tudo tem uma data de validade. O peixe tem o seu prazo, o molho de carne também... Até o papel higiénico tem prazo. Haverá alguma coisa que não tenha limite de validade?

Tanto fiz que acabei por encontrar a trigésima lata de ananás. No começo do dia 1 de Maio apercebi-me de uma coisa: que para a May sou igual a uma lata de ananás.

Numa noite acabei com trinta latas de ananás. Todo aquele ananás deu-me cabo do estômago. Entrei num bar. Talvez o álcool ajudasse a minha digestão. Há uma canção intitulada «O Amor termina ao Amanhecer». É exactamente como me sinto. Como vou esquecer a May?

Prometo a mim próprio apaixonar-me pela primeira mulher que aqui entrar. Ela entrou, e nós fomos para o hotel.

Ao nascer do Sol, soube que era tempo de me ir embora. Mas antes, descalcei-a. Dizia a minha mãe que os pés das mulheres incham de dormirem calçadas com sapatos de saltos altos.

Nasci às 6 da manhã. Mais dois minutos e terei 25 anos. Por outras palavras, vivo já há um quarto de século. Para festejar o dia histórico decidi ir correr, para livrar o meu corpo do excesso de líquidos. Aquilo pôs-me muito contente. E ao vir-me embora da pista, deixei lá o meu beeper. Por saber muito bem que ninguém me ia ligar.

Mal virei as costas, tocou. Corri para ligar à operadora.

- A sua amiga do quarto 702 deseja-lhe os parabéns.

No dia 1 de Maio de 1994, uma mulher deu-me os parabéns. Só por causa disso lembrar-me-ei dela toda a vida. Se a memória pode ser metida numa lata, espero que nunca perca a validade. Mas se tiver de ter uma data limite, espero que seja daqui a dez mil anos."

Chungking Express, Wong Kar-Wai