Um novo fim
Perguntaram-me ontem, a respeito de ter afirmado sentir saudades de ser verdadeiramente feliz, quando teria sido a última vez.
Recuei no tempo e lembrei-me de mim com 20 anos, numa altura em que os sonhos eram isso mesmo: projectos em que acreditavamos inocentemente, nos quais investiamos convictos de que ali estaria o nosso futuro. Na época em que sonhávamos construí-lo. Surpreendi-me com a extrema facilidade com que consegui sair de dentro de mim para me ver lá atrás, com 20 anos. E sorri com ternura do que via.
A pessoa que comigo conversava disse-me que eu de facto tendia a colocar-me de fora da minha vida para analisá-la sistematicamente e que talvez estivesse na altura de entrar para dentro de mim e ficar por ali uns tempos. Assumir a minha personagem que optei por colocar no guarda-roupa a empoeirar-se, há uns anos atrás. Tinha, acima de tudo, de ir buscar a Miss Page com 20 anos que entretanto abandonei e entreguei a um fim tão diferente daquele que sonhei para ela.
Com 20 anos a vida parecia-me tão cinematográfica... as coisas que me aconteciam, do modo como apareciam na minha vida, surgiam como se tivessem saltado das folhas de um livro, de tão poéticas e mágicas que eram. Um simples acto nunca era um simples acto. Era um acto que podia ter sido escrito sob a forma de um poema ou saído de uma tela de cinema.
Hoje percebo que o modo como via e sentia as coisas à minha volta não eram cinematográficas apenas pela beleza e surpresa de que se faziam rodear. Era, também, porque vivia convicta de que a minha vida iria ser para sempre a de actriz e isso transpirava pelos meus poros a cada minuto que passava, sem que eu me apercebesse disso. Tudo o que via enquadrava-se em planos perfeitos, traçados por algum realizador, em que eu, a personagem principal da minha vida, me movia. Era como se assistisse ao meu próprio filme e era tão belo filmá-lo em tempo real...
Guardei a película numa caixa de arquivo no dia em que optei abandonar o teatro, sabendo das consequências e do timming serem quase irrecuperáveis. Sabia que dificilmente mais tarde as coisas se iriam conciliar como se conciliaram para seguir o meu sonho com naturalidade. Que mais tarde, seria sempre tarde demais. Mas, ainda assim, larguei-me lá atrás.
A pessoa que eu fui tem de ser resgatada, mesmo sabendo que nada vai ser refeito depois de tanto tempo. Que as coisas não mudam agora, que não há como corrigir. Mas, pelo menos, quero voltar a sentir-me mais próxima dessa Miss Page e escolher para ela um final diferente.
Dizia-me, quem comigo falava, que tinha de pegar-lhe ao colo e confortá-la por tanto tempo abandonada entre os destroços de uma vida que se abateu sobre ela e que, com a mesma determinação e paixão com que me entreguei a um novo projecto, quando tinha 20 anos, terei agora que me apaixonar por essa jovem que já fui. Recuperá-la. Trazê-la de volta para a minha história. Voltar a baixar as luzes e a projectar a minha vida num grande ecrã.
Descobri que essa magia cinematográfica havia voltado para a minha vida quando, depois de ter caminhado cabisbaixa por Lisboa, subi ao meu apartamento, abri a porta e deparei-me com duas fotografias tiradas durante o último espectáculo que fiz. A preto e branco, lá se têm deixado pendurar na parede do meu quarto. Pensei em mim com 20 anos e viajei por esse passado fotografado. Pensei: tenho de acabar este filme e, de preferência, a cores.